2 de Outubro de 2023
Republicanos e o Registo Civil de “não católicos”
4 janeiro 1908, Administração do Concelho de Vila Nova de Ourém
Registo de nascimento de Democracia, filha legítima de Artur de Oliveira Santos, latoeiro e de Idalina de Oliveira Santos, doméstica, residentes em Vila Nova de Ourém, nascida a 20 de dezembro de 1907.
PT/ADSTR/ACD/ACVNO/001/0001 – Arquivo Distrital de Santarém, Administração do Concelho de Vila Nova de Ourém, Registo de nascimento, liv.1, f.1v.-2 (brevemente disponível em linha)
“O registo civil de atos vitais foi criado em Portugal em 1832 (Decreto de 16 de Maio), no âmbito da reorganização administrativa levada a cabo pelo governo liberal, por iniciativa de Mouzinho da Silveira.
A Lei da Divisão Administrativa, de 18 de Julho de 1835, confirmou o princípio da autoridade do Estado para registar “as épocas principais da vida civil dos indivíduos; o nascimento, casamento e óbito”, atribuindo aos Administradores de Concelho, os magistrados administrativos a nível municipal, a responsabilidade pela organização do registo. Os Códigos Administrativos de 1836 e 1842 retomaram esta disposição relegando ambos a sua regulamentação para uma data futura.
Apesar de reafirmado pelos sucessivos diplomas legais ao longo do século XIX, o registo civil não seria levado à prática devido às enormes resistências de um país esmagadoramente católico.
O Decreto de 19 de Agosto de 1859, que regulamentava o registo dos nascimentos, casamentos e óbitos, confessava claramente que o Estado, “depois de algumas tentativas mal sucedidas, se viu na necessidade de renunciar” ao registo civil e reconhecia as vantagens de serem os párocos a assegurarem a certificação de “certos actos das exclusivas atribuições eclesiásticas”1. O poder civil determinava os moldes em que o registo se devia processar mas reconhecia à Igreja toda a competência na sua concretização.
[…]
O Estado declinava assim toda a responsabilidade sobre o registo dos actos vitais e respectiva certificação e mesmo sobre a fiscalização do cumprimento da lei, confiada às autoridades eclesiásticas.
Foi apenas em 1878 que se regulamentou o registo civil exclusivamente destinado, no entanto, aos não-católicos, ao mesmo tempo que se confirmava o registo eclesiástico para os católicos “até que o poder legislativo tenha providenciado”. O poder legislativo continuava a ignorar uma das questões fracturantes da sociedade portuguesa.” (MARIZ)
Por essa altura, para o combate ao clericalismo e ao fanatismo religioso e em defesa do estado laico, foram criadas a Associação Promotora do Registo Civil (18 de novembro de 1876) e a Associação dos Livres Pensadores (1880).
A Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento, de cariz maçónica, é fundada a 5 de agosto de 1895. Foram seus fundadores: Ferreira Chaves, Eduardo Pinto, José da Costa Lemos, Lomelino de Freitas, Vasco Gamito, Raul Joaquim Gil, Carlos Cruz, entre outros.
“Em 11 de janeiro de 1891, em cima da “Revolta de 31 de Janeiro”, o “registo civil obrigatório” foi inscrito no programa do Partido Republicano Português e defendido pelos seus líderes – Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Homem Cristo, entre outros. O programa republicano de 1891, sendo mais explícito que os anteriores em matéria de culto, clarifica um conjunto de medidas laicizadoras que serão retomadas em 1910-1911: a introdução do registo civil obrigatório, o ensino primário obrigatório, gratuito e laico, a secularização dos cemitérios e a abolição dos juramentos civis e políticos. A questão adquire um caráter de combate cultural e político a partir da reorganização da Associação Promotora do Registo Civil, em 1895 – um motivo simples e compreensível para motivar o combate anticlerical da população urbana, muito sensível às questões da liberdade religiosa e da liberdade de consciência que vão atravessar o mundo no dealbar do séc. XX.” (FARINHA)
Até à instauração do registo civil obrigatório para todos os cidadãos, promulgado a 18 de fevereiro de 1911, o registo civil de não católicos, sobretudo o de nascimentos, constituiu um importante veículo de afirmação política e cultural para os militantes republicanos. Muitos fizeram questão de, não só registar os seus filhos, como também de lhes dar nomes evocativos. Vejamos alguns exemplos retirados dos livros de registo de nascimento das Administrações dos Concelhos de Abrantes, Cartaxo, Chamusca, Rio Maior, Tomar e Torres Novas:
Aurora,
Aurora da Liberdade,
Democracia,
Liberdade,
Liberta,
Lomelino2,
Victor/ Victoria, entre outros.
O documento que hoje publicamos, dá nota disso mesmo. Artur de Oliveira Santos, que viria a ser conhecido como o administrador do concelho de Vila Nova de Ourém que prendeu os videntes da Cova da Iria, fez registar 3 dos seus 8 filhos/as no livro de registo de nascimentos da Administração do Concelho: Franklin, Democracia e Victor.
1 O Decreto de 2 de Abril de 1862, geralmente citado como regulamento do registo paroquial, apenas altera alguns pormenores deste Decreto de 1859, acrescentando-lhe os modelos dos vários tipos de registo.
2Talvez de Lomelino de Freitas, um dos fundadores da Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento.
Referências:
FARINHA, Luis – A modernidade no período republicano: O registo civil obrigatório. Lisboa: Esquerda.net, 24-05-2010. [Consult. 25-09-2023] . Disponível em WWW:<URL:https://www.esquerda.net/artigo/modernidade-no-periodo-republicano-o-registo-civil-obrigatorio/72873Z>
MARIZ, José – O Registo Civil no Arquivo Distrital de Lisboa, ADLSB, 2005 . (documento interno, não editado)